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litERÊtura

Grupo de estudos e pesquisas em diversidade étnico-racial, literatura infantil e demais produtos culturais para as infâncias

Concepção do grupo

Criado em 2017, pela profa. Dra. Débora Cristina de Araujo, o LitERÊtura – Grupo de estudos e pesquisas em diversidade étnico-racial, literatura infantil e demais produtos culturais para as infâncias está vinculado ao Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Seu nome foi inspirado na junção entre a literatura infantil e a/o Erê que, em matrizes culturais africanas, é a representação da alegria, que habita cada criança.

Inicialmente o grupo visava agregar discussões e desenvolver pesquisas acadêmicas sobre a literatura infantil e juvenil na perspectiva das relações étnico-raciais: com foco específico sobre personagens negras. Desse objetivo originou-se o projeto de pesquisa em andamento intitulado “A diversidade étnico-racial nas bibliotecas escolares: um olhar sobre estereótipos e representações positivas”, cuja proposta é mapear as obras literárias com personagens negras protagonistas nas bibliotecas de escolas da Grande Vitória, a fim de traçar estratégias para o trabalho de mediação da leitura.

Nesse período inicial, o grupo contava com estudantes de Letras, Artes Visuais e Química, com pesquisas de Iniciação Científica com as temáticas: ilustração de personagens negras; estado da arte sobre literatura infantil e juvenil em artigos acadêmicos; e representatividade de meninos negros. No decorrer do tempo, o Grupo passou a refletir, com mais afinco, sobre a necessidade de ampliar a noção de infância para o plural, entendendo as diversas trajetórias dos próprios membros do Grupo (que crescia a cada dia mais), cujas experiências não foram iguais: ao contrário, foi possível reconhecer que, embora a discriminação racial fosse um elemento em comum, a classe, a orientação sexual, as condições afetivas e familiares, a localização geográfica e os contextos escolares foram determinantes para a construção das identidades e subjetividades de todas/os.

Assim, passamos a investir maciçamente na “recuperação narratívica” das nossas infâncias, concebendo a memória como um aspecto da construção das identidades diaspóricas. Nessa perspectiva, compreendemos a recuperação narratívica como um valor/elemento africano e, por consequência, afro-brasileiro. Concordando com Vanda Machado (2006, p. 80), “o ato de lembrar está na essência das tradições que sustentam a organização comunitária e formas de governar nessas sociedades”.

Ao propor essa dimensão da formação de identidades e subjetividades negras, refutamos uma argumentação desqualificadora que associa essa prática a uma suposta essencialização ou recuperação forçosa de uma “África idílica”. Ao contrário, para nós, recuperar nossas histórias, incluindo nossas ancestralidades, é a maneira pela qual nos apresentamos ao mundo, além de que o (re)conhecimento do que nos constitui é capaz de mostrar para onde e como queremos seguir.

Sobretudo no ambiente acadêmico, essa noção de autoconhecimento é preponderante para não cairmos em armadilhas que insistem em nos aprisionar em modelos cristalizados de pesquisas acadêmicas visando apenas a produtividade esvaziada de afetividade, coletividade e, sobretudo para nós, de “infancialização”. Para Renato Noguera e Marcos Barreto (2018, p. 627) a infancialização “é uma maneira de perceber na infância as condições de possibilidade de invenção de novos modos de vida”.

Nesse sentido, infancializar não se reduz à marcação temporal de uma faixa etária mas, diferentemente, relaciona-se a “uma forma de vida que torna possível assumir a instabilidade da vida radicalmente” (NOGUERA; BARRETO, 2018, p. 631). Essa compreensão convergiu com os interesses do Grupo de mantermos ativamente o espírito da infância, as/os nossas/os erês, em nossas práticas e produções acadêmicas.

Infancializar as produções e os modos de nos (com)portarmos academicamente implica a construção de acordos que envolvem revisões das próprias infâncias para que, munidas/os de memória suficiente sobre esse momento da vida demarcado temporalmente, possamos reativá-las na vida adulta, “tornando viável a percepção de que as ações éticas e políticas precisam levar em conta quem já esteve aqui (ancestralidade) e quem estará (futuridade), além das pessoas que estão vivas na atualidade” (NOGUERA; BARRETO, 2018, p. 630-631). Por isso, para nós, o exercício de infancializar relaciona-se à ancestralidade, ressaltada por Sobonfu Somé (2007) como um conceito intimamente ligado à criança.

Na concepção de nascimento do povo Dagara (Burkina Fasso), Somé nos mostra a direta relação entre a criança e o espírito ancestral: “o povo de nossa aldeia diz que as crianças não pertencem completamente aos pais que lhes dão a luz; diz que elas usaram o corpo de seus pais para chegar, mas pertencem à comunidade e ao espírito” (SOMÉ, 2007, p. 68). Ainda que faltem elementos para tal afirmação sobre nossas trajetórias – dado a fragmentação causada pela ruptura da escravidão atlântica – acionamos essa perspectiva por entendermos a infância e sua importância.

Ainda mais quando se trata de um grupo que questiona constantemente os fundamentos da literatura infantil responsáveis por classificá-la como literatura menor, realocar a posição das crianças e das infâncias a outro patamar de importância, representa reconhecer sua potência disruptiva (NOGUERA; BARRETO, 2018). Isso se deve, em grande medida, ao nosso exercício de reconhecer o significado de infância a partir de perspectivas africanas. Um exemplo apresentado pelos autores é a palavra ubuntwana que, no contexto Xhosa, significa infância. Trata-se de uma palavra formada por outras duas (ubuntu + twana) em que a primeira aciona uma noção de coletividade e a segunda de criança. É essa infância que nos interessa: a ubuntwana, que “quer dizer infância enquanto agente de provocação, capaz de afetar afetivamente, acolher e provocar o encantamento diante da vida” (NOGUERA; BARRETO, 2018, p. 631).

Assim, foi possível iniciarmos ações concretas como grupo de estudos, pesquisas e momentos formativos. Outra característica que nos marca, tomando a noção de infância aqui explicitada, foi o desafio de inserirmos, de modo responsável e consciente, o riso, a alegria, a brincadeira e a liberdade de expressão. Assumimos que se trata de um modo responsável e consciente por ser produzido sempre num campo de negociações entre o que “pode e o que não pode” num universo acadêmico.

Acrescenta-se a isso o fato de sermos, em maioria, um grupo formado por pessoas reconhecidas socialmente como adultas, etapa da vida que exige um conjunto de posturas e habilidades constantes para reafirmar o adultocentrismo. Então, foi e ainda é necessário um exercício de ousadia e provocação dos nossos limites de adulats/os ou, melhor, da nossa adultonormatividade.

Por vezes, questionávamos se o que produzíamos nos encontros semanais era realmente útil do ponto de vista acadêmico já que “gastávamos” muitas horas tratando de temáticas que envolvem nossas subjetividades: conflitos pessoais, existenciais, sociais e econômicos, tendo sempre as experiências do racismo (e também da homofobia para alguns membros do grupo) atravessando nossas narrativas. Vez ou outra essa dúvida ainda ocupa nossas preocupações, mas cada vez menos, pois também estamos compreendendo o quanto não pretendemos avançar se isso implicar perda de liberdade de expressão e pensamento infancializante.

Aliado a isso está ainda outra característica da literatura infantil brasileira: o seu racismo. São diversos os estudos que demarcam o surgimento desse gênero literário atrelado a um projeto de nação embranquecida. Assim, além do apagamento de personagens negras durante os primeiros anos da história dessa literatura no Brasil (transição entre o século 19 e 20), nas décadas posteriores os espaços por elas ocupados eram irrelevantes, quando não marcadamente estereotipados. É nessa perspectiva que o LitERÊtura se apresenta com uma dupla proposta: tanto de expor esse racismo literário quanto de realçar produções que realocam a posição das personagens negras e seus contextos socioculturais.

Esse aspecto é bastante demarcado no Grupo a partir de uma metáfora. Num exercício de rememoração das trajetórias de discriminação das personagens negras na literatura infantil – tomando especialmente o exemplo de Tia Nastácia para facilitar essa exemplificação – um outro final é proposto para suas histórias:

Considerando os passos dados como mote para pensarmos o trajeto, convido as leitoras e os leitores a imaginarem o quanto as personagens negras mais antigas dessa literatura infantil, confinadas em estereótipos, cenas de violência, subserviência e desumanização devem estar olhando a realidade atual que está bastante diferente para suas netas e seus netos. […] Foram avanços significativos os passos dados ate aqui. Conquistas que possibilitaram hoje vermos protagonistas negras e negros vivenciando conflitos comuns a toda criança, tendo orgulho de seu corpo e de sua história e podendo rememorar e reverenciar sua ancestralidade, marcada não somente na sua memória afetiva, mas, sobretudo, em seus corpos pretos, em seus cabelos crespos e nos olhares sempre atentos e altivos. Se tal altivez não foi possível aos seus antepassados da literatura infantil brasileira, hoje as meninas e meninos, jovens, adultas e adultos protagonistas podem, ainda que em minoria, erguer suas cabeças, olhar para si próprios diante de espelhos e gostarem do que veem. E, atrás delas e deles suas avós e avôs, antes tão amordaçados, os observam olhando no espelho e anunciam: ‘Que ousadia! Que orgulho!’ (ARAUJO, 2017, p. 39-40).

É nessa pista que segue o LitERÊtura. Oriundas/os de lugares diferentes (sejam eles espaciais, econômicos, religiosos e sociais), temos as experiências com o racismo bastante realçadas no modo como interpretamos os textos acadêmicos e lemos a arte literária. Ainda que em proporção menor, as crianças (demarcadas como tal a partir de suas faixas etárias) que compõem o Grupo têm provocado nossas posturas e atitudes em relação a sua presença como membros. Seus principais temas de interesse e de atuação como leitores críticos das obras literárias e organização espacial da sala onde nos reunimos são em relação a desenhos animados e relações raciais. Eles leem os textos em voz alta, manifestam suas opiniões sobre a qualidade dos enredos das obras – que, muitas vezes, divergem das opiniões adultas – e propõem reflexões mais ampliadas sobre as trajetórias de personagens de desenhos animados. Ainda que a participação deles seja esporádica e condicionada à organização diária de suas mães, quando estão presentes impactam significativamente os modos como pensamos as pesquisas, os livros literários e as ações futuras.

Eduardo Araujo e sua filha, Helena

Os adultos e as adultas do grupo atualmente são de áreas de formação diversas: Letras (com línguas estrangeiras – Espanhol, Inglês, Francês, ou não); Artes Visuais, Artes Plásticas; Produção Cultural; Pedagogia; Educação Física; História; Ciências Sociais; Música e Filosofia. Nessa diversidade de áreas, o grupo é constituído por docentes da Ufes e da Uerj, da educação básica (Grande Vitória), estudantes de graduação, mestrado e doutorado.

Além da literatura infantil, outras artes são exploradas pelo grupo, por meio das artistas visuais, atrizes e bailarinas, realçando as conexões entre sensibilidade, estética e corporeidade como marcas da diáspora africana.

Thais Ximenes contando e cantando a história “Ombela, a origem das chuvas”, de Ondjaki
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Ione Reis cantando e tocando a música “Abayomi”, de sua autoria
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E mesmo em um contexto de pandemia, em que o contato físico tem sido evitado, nossos encontros e nossas reflexões coletivas ocorrem de um modo ou de outro, reforçando os desejos de compor, juntas e juntos, um espaço de aquilombamento e de fortalecimento das nossas identidades na diáspora.

É preciso ressaltar que o movimento da vida é dinâmico e muitas pessoas vão, outras vêm, outras vão e vêm, mas sempre deixando um pouco de si e levando um pouco do Grupo. Essa dinamicidade do processo é que o deixa mais rico e mais circular, realçando os vínculos do LitERÊtura com as culturas africanas.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, Débora Oyayomi. Qual o lugar ocupado pelas personagens negras na literatura infantil brasileira? Refletindo sobre estereótipos e originalidade. TOM UFPR, v. 3, p. 20-42, 2017. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-criticos/1061-caminhos-trilhados-pelas-personalidades-negras-na-literatura-infantil-brasileira

MACHADO, Vanda. Tradição oral e vida africana e afro-brasileira. In: SOUZA, Florentina; LIMA, Maria Nazaré (Orgs.). Literatura afro-brasileira. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/Brasil/ceao-ufba/20170829041615/pdf_257.pdf

NOGUERA, Renato; BARRETO, Marcos. Infancialização, ubuntu e teko porã: elementos gerais para educação e ética afroperspectivistas. Childhood & philosophy. Rio de Janeiro, v. 14, n. 31, p. 625-644, set.-dez. 2018. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/6593654.pdf

SOMÉ, Sobonfu. O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar. 2. ed., São Paulo: Odysseus, 2007.

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